Passei mais de uma semana sem postar nada aqui, devido às muitas ocupações da semana passada. Vida de doutorando que trabalha não é nada fácil... Compenso a ausência da semana com mais um microconto. Espero que gostem.
Enquanto terminava de empacotar seus pertences, ele não deixava de pensar no alívio que era mudar-se dali. Morava ali há mais de um ano, que, por sinal, custou muito a passar. Lembrou-se também de como fora parar ali: a emoção de sair da casa paterna, de ter o seu próprio espaço (ainda que alugado), de fazer seus próprios horários sem dever satisfação a ninguém.
Escolhera aquela casa (talvez a palavra não seja exatamente adequada para descrever aquele ambiente: uma minúscula sala de estar; um quarto pequeno, onde competiam, em busca de espaço, uma cama de solteiro, um guarda-roupa e uma pequena estante na qual ficava a TV; uma microcozinha e um banheiro) por uma confluência de fatores: ela ficava próxima do trabalho, ao qual poderia ir caminhando todos os dias; também se localizava a um pulo da faculdade, aonde também iria a pé, beneficiando-se duplamente – faria exercícios regularmente ao mesmo tempo em que economizaria dinheiro com transporte, afinal, seu salário não era lá grande coisa; e era o imóvel com o aluguel mais barato dentre os que ele visitara anteriormente.
Entretanto, a vida não é feita apenas de vantagens e benefícios, é cheia de reveses também. Ao lado do seu lar doce lar, havia um terreno onde supostamente seria construído um prédio residencial, mas no qual, desde o momento em que fora morar lá até o dia em que saíra, havia apenas muito entulho, os restos mortais das casas que outrora existiram ali, o que favorecia o aparecimento de animais peçonhentos como cobras, aranhas e escorpiões. Ele, por sua vez, tinha uma verdadeira fobia desses animais. Não conseguia ficar no mesmo ambiente em que houvesse um deles. Por isso, nunca visitava o primo que tinha uma aranha-caranguejeira de estimação e também mudava de canal sempre que aparecia um desses bichos horríveis na televisão. Assim, foi muito difícil para ele lidar com o que ocorreu na segunda noite após a sua mudança para aquela casa.
Ao entrar em casa, após a volta da faculdade, foi à cozinha, como de costume, beber um pouco de água. Depois se dirigiu ao banheiro, a fim de satisfazer uma de suas necessidades fisiológicas. Quando acendeu a lâmpada, seu sangue praticamente congelou nas veias: uma enorme aranha, negra e peluda, passeava despreocupadamente sobre o vaso sanitário. Ele, então, afasta-se rapidamente da porta, dá meia-volta e sai quase correndo de casa. E agora? O que faria? Como iria resolver aquele problema? Não podia pedir ajuda aos vizinhos, pois, além de não conhecer ninguém nas redondezas, seria muito humilhante se ele, homem-feito e independente, não conseguisse matar uma simples – talvez não tão simples – aranha. Poderiam caçoar dele pelo resto da vida.
Parou um pouco para refletir, respirou fundo e entrou novamente em casa. Dessa vez, extremamente cauteloso, foi até a cozinha, pegou uma vassoura, e rumou, pé ante pé, para o banheiro, tal qual São Jorge, determinado a aniquilar aquele dragão. Enquanto entrava, bradava em pensamento: É você ou eu. Apenas um de nós sairá vivo daqui. Depois de um embate trabalhoso, atrapalhado e, praticamente, sangrento (dentre outros adjetivos que não é lícito mencionar), conseguiu exterminar aquela besta-fera. Livrou-se dos seus restos mortais e trancou-se no quarto, porém não conseguiu dormir naquela noite.
Na semana seguinte, quando voltava novamente da faculdade, deparou-se com um escorpião no mesmo local. Por que esses bichos só inventam de aparecer aqui à noite e justo no banheiro? E justamente na hora mais imprópria? – lamentava consigo. Escorpiões causavam-lhe ainda mais pavor do que aranhas, e esse, em particular, apesar de seu diminuto tamanho (apenas 5cm de comprimento), proporcionou-lhe um combate deveras mais acirrado, pois misturavam-se nele um medo e uma fúria colossais. Além disso, seu oponente era bem ágil e toda vez que se aproximava dele um calafrio descia-lhe pela espinha. Depois de mais de 20 minutos, ergue, enfim (com o auxílio de uma pá), o cadáver do seu inimigo. Corre para o quarto, atira-se sob os lençóis, e dorme, esquecendo-se de que precisava ir ao banheiro.
O tempo foi passando, e os visitantes indesejados tornaram-se habitués. Quase toda semana, encontrava uma aranha ou um escorpião ou uma cobra (esta menos frequente, mas ainda presente), sem falar nas baratas e ratos. Esses outros habitantes fizeram-lhe rapidamente querer se mudar dali. Então, sempre que ficava sabendo de alguma casa ou apartamento disponível para aluguel no bairro, corria até o referido imóvel. O aluguel da maioria deles, contudo, ficava em uma faixa de preço acima do que ele poderia pagar. Alguns já estavam alugados quando ele os ia conhecer. Voltava desanimado para casa, pensando em quando conseguiria libertar-se daquela vida. Não queria voltar para a casa dos pais, pois isso seria um retrocesso, nem pedir-lhes ajuda financeira, o que iria contra os seus princípios. Afinal, gostava de resolver os próprios problemas sem a ajuda de ninguém.
Alguns meses depois, começou a sair com uma colega de turma e a coisa foi ficando séria. Sua namorada sabia do seu pavor por aqueles animais peçonhentos e do quão difícil era para ele conseguir matá-los. Ela mesma já tinha entrado na peleja algumas vezes. Decidiram morar juntos, depois de alguns meses de namoro. Todavia, não poderia ser ali. Ele ansiava com todas as forças deixar aquele local, e essa parecia ser a oportunidade ideal. Após um período de buscas, finalmente encontraram o imóvel ideal: uma pequena casa (pequena, mas bem maior do que a atual) no mesmo bairro, ainda mais próxima do trabalho e da faculdade. Parecia um sonho transformando-se em realidade.
Realizaram a mudança rapidamente. No dia seguinte, ao chegar do trabalho, é recebido pela namorada, que estava estranhamente séria. Ela diz:
– Oi, amor. Senta um pouquinho aqui, não se assuste, nem vá ao banheiro agora. Ele pergunta, meio espantado, sem entender nada: – O que está acontecendo?
– Não é nada.
– Se não é nada, então não há problema se eu for até o banheiro.
– Bem, já que você insiste...
Ele se dirige ao banheiro. A porta está aberta e a lâmpada, acesa. Assim que entra, rapidamente antes de desmaiar, ele vê a suma de todos os seus medos, o seu nêmesis implacável: passeando calmamente sobre o vaso, como que esperando por ele para lhe dar as boas-vindas, um escorpião.
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